quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Aprenda algo hoje

Ela sempre soube o que seria da vida dela. Quando nasceu, chorou um pouco porque alguém a havia tirado daquele lugar quentinho e seguro, mas depois se acalmou porque já sabia. Foi manipulada por várias mãos desconhecidas, precisou adaptar-se àquela nova fase e logo logo ficou quietinha, pois já tinha tudo em mente. Ela sempre soube.
Ela foi crescendo, aprendendo a falar e a andar. Descobriu que havia coisas incríveis, como ler e escrever, e que poderia, ou melhor, que deveria aprender aquilo tudo logo. Começou a conhecer os livros muito antes de aprender a pronunciar certas letras corretamente. Gostava das figuras, mas se interessava muito pelas palavras. Frases. Histórias. Ela já sabia.
Ao concluir a primeira série do Ensino Fundamental, ela sabia o alfabeto de cor e salteado. Ela lia, lia, lia. Lia tudo que via pela frente, desde gibis até folhetos encontrados na casa dos vizinhos sobre as testemunhas de Jeová. Ela tinha certeza de que era importante ler o máximo possível, sobre tudo que encontrasse pelo caminho.
Mas a vida ás vezes nos obriga a fazer certos sacrifícios para continuarmos a cumprimir nossa missão. Ela teve que lidar com números, fórmulas, nomenclaturas estranhas - e provar que também entendia tudo aquilo através dos testes aplicados na escola. Isso durou mais de uma década. Mas ela nunca deixou de saber.
Mostrou a todos que sim, era capaz de lidar com coisas diferentes, mas ela ainda tinha aquela certeza. Ela queria algo a mais. Ela tinha pressa, mas aprendeu a esperar. Ela sabia que algo muito grande estava por vir, que algo maravilhoso e especial aconteceria. E que a hora dela chegaria.
Eu tentei avisá-la de que talvez não fosse tudo tão fácil, rápido, certo e colorido como os desenhos que ela fazia com giz-de-cera. Ela foi muitas vezes uma garota normal, com dúvidas, medos e angústias sobre o futuro. Afinal, ela era humana. Mas era estranho como ela sempre, mas sempre soube o que fazer, mesmo quando não tinha apoio algum.
Passei muito tempo sem vê-la - eu estava em um outro mundo. Quando a reencontrei, não me aguentei de curiosidade e fui confrontá-la. Ela permanecia no mesmo lugar, com as mesmas feições e o mesmo ar de sabedoria. Ninguém podia ser tão irritantemente confiante. "Conseguiu o que queria, menina?" perguntei, com desdém.
Ela sorriu, levantou o rosto e respondeu: "Sim. Todos os dias!". Foi neste momento que eu compreendi o sentido de minha existência.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Eterna espera

Hoje eu cheguei em casa e você não estava lá. Simplesmente não estava. Fiquei triste. Já faz tanto tempo que nos separamos... mas senti uma solidão tão profunda! Há tempos eu não me sentia assim. Sozinha, deprimida. Fiquei esperando o barulho de chave na porta, talvez você tivesse saído para comprar nossa janta. Eu esperei, esperei, esperei. Mas você não apareceu. E por que apareceria? Não estamos mais juntos. Eu até já tenho outra pessoa. Ele me trata bem, me respeita. Acho que não seria pretensão dizer que ele me ama. Se eu o amo? Não é o caso. O caso é que, depois de tanto tempo conformada com nossa separação, eu fiquei esperando você entrar por aquela porta, com sua cara de deboche constante, como se nada tivesse acontecido.
Sei que você jamais lerá este texto. Você nunca me leu, nem quando estávamos casados. Nunca se interessou pelas minhas palavras, fossem ditas ou escritas. Você nunca me leu, nunca me ouviu, nunca viu quem eu era. Você só ouvia o que queria. Como quando eu disse que gostaria que você fosse embora. Você fez suas malas e se foi. Nem protestou, apenas partiu. Se você tivesse olhado fundo nos meus olhos e interpretado minha alma, veria que eu só estava precisando de carinho. De um abraço. De uma prova do seu amor. Eu perdoaria todas as suas vaciladas, suas traições, seus casos com outras mulheres. Bastaria você implorar. Você é um burro, idiota, imbecil, mulherengo imprestável filho legítimo de uma grandissíssima puta. Mas eu te amava, eu te queria. Por que você não viu isso, seu ridículo?
Sei o que você deve estar pensando: Nossa separação era inevitável. Já não fazíamos amor. Não namorávamos, não saíamos para jantar, não passeávamos de mãos dadas. Você queria ter um filho. Claro, não era você quem teria de aguentar nove meses com uma bola de neve aumentando a cada dia dentro do seu corpo, seus pés inchando, seus peitos pingando leite, sua barriga sendo tocada por desconhecidos a todo momento. Eu sentia saudade daquele tempo em que você me chamava para a cama em busca de prazer e não de um óvulo fecundado. Por isso eu não topava. E se topava, ás vezes meio sonolenta, era por pura obrigação de esposa. Mas eu nunca deixei de tomar as pílulas. Você me viu jogar a cartela de contraceptivos na privada, mas no outro dia eu comprei outra e continuei tomando normalmente. Agora você já sabe por que não engravidei. Ou saberia, se lesse este texto.
Talvez eu estivesse com medo. Sabe quando a vida está tão perfeita e tão chata e tão estável e tão entediante e tão desconcertante justamente por estar boa demais? Você reclamava porque eu reclamava. É claro que eu reclamava! Onde estavam as emoções, o frio na barriga, a ansiedade que sentíamos no início do namoro? Já sei. Você diria que estávamos em outra fase. Que isso era coisa de adolescente, já éramos casados havia uns bons anos e o próximo estágio era um bebê. Mas eu não queria um bebê. Eu só queria você de volta. Aquele cara que me fazia voar, ver estrelas de neon flutuando em mares cor de verde musgo. E lá vinha mais uma briga.
Quando eu disse que não te amava mais, querido, por que você saiu de casa? Minha intenção era ser agarrada à força e sacudida, como uma criancinha que faz birra, e chorar no seu ombro até ficar tudo bem de novo.
Eu só queria que tudo voltasse a ser como antes. Só nós dois com nossa felicidade. Será que, se eu tivesse previsto aquela sua atitude idiota de fazer suas malas e partir, eu não teria concordado em engravidar? Eu teria te mandado embora? Bem, agora é tarde para saber. Se você não tivesse feito suas malas, chamado o elevador, pegado aquele táxi, descido na frente daquele hotelzinho barato e tentado reagir ao assalto, eu ainda poderia cogitar uma reconciliação. Mas você foi orgulhoso, metido. E hoje eu sei que não tem como você voltar para mim.
Não pense que me sinto totalmente responsável. A culpa foi dos dois. Ou de nenhum. Tanto faz. Mas preciso confessar-lhe uma coisa: Ainda tenho esperanças de encontrar você do outro lado para lhe falar tudo isso. E, por mais que meu atual parceiro seja maravilhoso, ele não é você. Por isso às vezes eu venho para minha casa, sozinha, e fico fantasiando se você pensou em mim antes de morrer. Eu disse que não te amava mais e era tudo mentira. Eu ainda te amo, querido. Nunca deixei de te amar. Mas, por favor, quando nos encontrarmos de novo, tente me compreender e não faça tudo que eu pedir. Eu preciso ser contrariada às vezes.
Descanse em paz, meu amor. Espero que possamos ficar juntos em alguma outra vida.